terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O filho de mil homens







Tenho problemas com finais. Problemas sérios. Por isso, quase sempre empurro com a barriga, finjo que não vi e abafo os pensamentos. Isso acontece o tempo todo. E por mais que eu venha me esforçando para ser mais leve e desprendida, continuo com aquele aperto no peito toda vez que um final se anuncia.
Pois bem, adiei dois dias a leitura das últimas 10 páginas do livro O filho de mil homens, do escritor Valter Hugo Mãe, até não conseguir mais ignorar a sua presença física e a ausência da narrativa. E cá estou, depois do fim, pra dizer o que eu vi.
Começo por Crisóstomo, o protagonista da história, a voz suave do romance. É na fala dele que aparecem algumas das passagens mais bonitas. Crisóstomo é a representação da entrega. E a sua doação total ao amor que ele cultivou para o filho é o que movimenta a história. Ele representa aquele momento de fôlego que a gente precisa e toma em situações desconcertantes e que nos salva de nós mesmo. Crisóstomo representa a nossa autossalvação diante das inúmeras propostas de autossabotagem. E, assim como na vida, a força desse amor gera outros e outros amores que vão acontecendo ao longo de todo o romance
Mas, a suavidade é passageira. Ainda no começo, somos colocados diante de várias situações e comportamentos questionáveis. Tem um pouco de arrogância, indiferença, preconceito, maldade, autocomiseração, ganância. Essas coisas que vez por outra assombram a alma de qualquer humano. Todos os personagens, exceto o protagonista, reproduzem algumas dessas posturas. E é através das reflexões que esses comportamentos geram que vamos (re)conhecendo, com pesar, nossas próprias falhas silenciosas e maquiadas, escondidas lá no cantinho para que ninguém possa ver.
A história toda é um emaranhado de delicadezas e crueldades. Um morde e assopra sem fim. Na sua verossimilhança, vemos quase todos os personagens se entregarem a amores e hostilidades. E, nesse contraste, todos vão mudando o mundo.
Durante toda a leitura, uma frase me ocorria insistentemente: Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. E Crisóstomos é daquelas pessoas deliciosas que fazem a vida valer a pena. No fim, dá uma vontade danada de fazer uma faxina na vida e tirar todos os preconceitos debaixo do tapete e de dentro do armário e, assim, tentar ser alguém melhor. Não sei vocês, mas sair de um livro com a sensação de que a vida precisa que você se coloque para que ela exista, e que você exista da melhor forma possível, é motivo suficiente pra ler um livro, pelo menos umas três vezes. 

Com vocês, Crisóstomo: "Confiava por instinto que confiar era já a resposta. Era muito especial que pudesse enternecer-se consigo mesmo. Com o que fora tão recentemente, como se pelo outro lado das coisas também lamentasse deixar-se de mão e mudar.
Mas não era uma tristeza, era exatamente uma saudade de ter sofrido o que sofrera, o necessário para lhe ensinar a usufruir mais tarde, agora, a felicidade. Achava ele que se devia nutrir carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade.
Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro. Apenas isso. Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. Se assim for, não é necessário voltar atrás. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita. Estava a crescer. O pescador crescia para ser um homem tremendo."