No curso dessa longa(?) caminhada que resumidamente chamamos de vida, descobrimos que nossa jornada por aqui começa antes mesmo de nós. Somos frutos das bagagens alheias, de nossos pais. Nascemos com um prefácio de história bem definido e só a partir dele construímos o algo-nosso.
E começamos cedo, sem nem ao menos discernir que nossos primeiros passos estariam desenhando quem nós seríamos no futuro. Quem lhe deu o primeiro banho, se fomos amamentados, se tivemos uma infância feliz, nosso primeiro dia na escola, o que levávamos na lancheira, nosso primeiro coleguinha de classe, a tia do jardim, o dever de casa, nossa casa, se temos irmãos, quem foi a nossa babá, se tínhamos condição de ter uma babá, a primeira nota baixa, a recuperação, o primeiro amor, a primeira decepção...
Ninguém nos ensinou como crescer e qual é o nosso papel nessa história. Durante muito tempo, inclusive, nem nos damos conta de que somos os protagonistas, mesmo porque não tínhamos autonomia de ser. Eramos crianças e ser era coisa de gente grande. Automaticamente e imaturamente, fomos direcionados à vida em sociedade: a educação. Acreditamos naquilo que nos ensinaram e tudo - sendo novo, fresco - chegava-nos com excelente aceitação. E, assim, foi se formando a base do que seríamos mais tarde.
Na adolescência, procurávamos novos ídolos que não seriam mais os nossos pais. Eles perderam as máscaras, foram descobertos sem fechar a porta. Passávamos a entender, mesmo que sob efeito de hormônios em erupção, que crescer estava nos levando a algum lugar. Só nos restava descobrir que lugar era esse. Olhávamos para trás a fim de alcançar alguma luz de onde vieramos, mas o que víamos eram apenas as máscaras de nossos únicos ídolos ao chão. Tudo, à luz dessa fase, nos parecia imagens borradas, um mundo turvo. A única certeza que tínhamos era: "precisamos acreditar em algo que nos sustente, pois começamos a engatinhar agora!" Nesse momento, surgiam nossos primeiros "andadores": Mick Jagger, Beatles, Madonna, Deus? Qualquer coisa que orientasse a nossa rosa dos ventos.
Já a juventude é uma época tão trágica quanto libertadora. Começamos a entender que somos parte de um todo imenso, o mundo, cheio de variedades, carências, complexos individuais, prazeres e dor. Olhamos para trás e soltamos um "puta que pariu, por que eu não fiz aquilo naquela oportunidade?". A resposta seria: simplesmente porque não havíamos chegado nesse ponto, no ponto de entender as coisas. Chegamos aos vinte e poucos anos cheios de conceitos engessados, cheios de concretude de ideias que nem sabemos de onde vieram. Novamente a vida nos parece turva. Temos idade e, muitas vezes, autonomia de ser, mas já somos e nem percebemos. Fomos levados até aqui por uma coisa que nos habituamos a chamar de crescimento. Cresceram a gente. A partir de agora é definir o que fazer com o que temos nas mãos.
Os mais corajosos adultos usam o material como referência de desconstrução. Enfrentam seus medos, seus traumas, suas dúvidas. Planejam, cutucam, resolvem. Os Florentinos Ariza acreditam que o amor salva e que basta encontrar quem nos ame como somos que viveremos a felicidade. Os quietos, concisos e politicamente corretos agonizam por dentro e se enchem de ansiolíticos como se tapassem com uma rolha uma garrafa de champanhe prestes a explodir. Tem também os mais comuns, que encontram válvulas de escape, bem ao contrário dos concisos. Nesse caso, eles aproveitam todo o arsenal da modernidade, desde drogas a baladas sem propósito que irão alimentar uma sede de ser que termina na manhã (ou tarde) do dia seguinte. E muitos passam da faixa dos trinta vivendo isso. A famosa síndrome de Peter Pan. Os que sofrem dessa síndrome têm medo do próximo "estágio", como no Mário World. Então, já que passaram um bom tempo vivendo os vinte e poucos anos, acomodaram-se por ali mesmo. Sem novas síndromes.
O que leva o mundo para frente(?) é exatamente não enxergar e brecar a vida com um freio de mão. Paradoxal? Isso, assim mesmo. Melhor metáfora seria dizer que esses dirigem a vida em piloto automático ou desligaram ela, mas sem tirar da tomada, no stand by. Aí não tem sofrimento: panos quentes em qualquer urgência de vida (fica aí, cara, cresce agora não, vai ter bolo!). Em outras palavras: não assume posições novas.
Eu, no curso dessa longa (?) história minha, tive a sorte de ter poucos e bons amigos, com os quais eu posso ser livremente. Não que a nossa existência esteja fadada à limitada condição de nascença. Todos nós estamos sempre, incansavelmente, buscando ser melhores - às vezes, nem percebemos isso, mas estamos. Muitas vezes, erradamente, mas estamos. Seja para si mesmo, seja para os outros. E, no ideal dos casos, todas as respostas anteriores estariam corretas.
Levantei bandeiras, fui do rock, do samba e passei pelo axé dignamente na época que tinha que ser. Chorei de saudade, morri de amores, confessei ao telefone, prometi e não cumpri, menti, dancei, acolhi e fui acolhida.
Fui adulto maduro aos 15, comecei a adolescência rebelde aos 19, fui mimada e infantil - quase uma bebê chorona - aos 20 e hoje vivo a incoerência, indecência e insistência de ser uma Florentino Ariza aos 25. A minha vida não foi o revés do natural, de forma alguma. Mas é bagunçada. Aos 8 fui forte, aos nove fui firme, aos 10 botei no colo uma criança de 50 anos, chorando uma dor que eu nem compreendia o que era nem sabia de onde vinha, aos 11 fugi do mundo e saí de casa. Fui mãe aos 12 e abandonei o filho aos 23 anos. Cresci antes da hora e hoje sou Benjamin Button da vida real.
Se a minha vida pudesse ser comparada à construção de uma cidade, Oscar Niemeyer morreria muito antes dos 104 anos só do choque da decepção. Seria muita contramão pra uma cidade só. Felizmente, estamos falando de gente, essas que têm a capacidade de se moldar a qualquer eventualidade. Infelizmente, também, falamos de gente, que em qualquer adaptação a novas realidades, nenhum projeto, por mais perfeito que seja planejado e por mais dedicação que se atribua, pode garantir o sucesso da conclusão final na prática. Tem remendo para tudo quanto é lado. E enquanto se conserta um ponto, novas falhas vão surgindo.
Nossos ídolos agora são os nossos amigos. Descem os posteres de rock na parede do quarto e acumulam-se fotografias de amizade. Antes, dávamos os primeiros passos com a ajuda de andadores; agora, nossas bengalas são outras, de madeira de lei.
Graças a Deus ainda existe amor nessa vida.